quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Cerceando Liberdades


Existe um cerceamento de liberdade,  na sociedade e academias, que nunca pensei ser possível assim tão próximo e vívido.
Principalmente depois de ter ultrapassado dois terços (2/3) da minha existência.
Natural seria que a cidade tranquila, introspectiva e vitoriana evoluísse para lufadas vigorosas de liberdade, mas não. Caiu num círculo vicioso de ideias, que historicamente não alcançaram seus objetivos, estagnando tudo que seu braço alcança.
Quando professora de ciências acreditava que partir da vivência dos alunos, da sua bagagem cultural e familiar, seria o caminho mais lógico para ensinar  ciência. Para despertar o pensamento científico e ensinar conceitos que nossa racionalidade conseguiu conhecer e decifrar.


Esta postura teve raiz no meu próprio aprendizado com o  saudoso professor Mazzepa, que explicava efeito Tyndall usando a tarefa cotidiana de varrer a casa. Realidade muito conhecida das meninas abastadas que frequentavam o colégio, e aprendiam como comandar todas as tarefas domésticas. Também era realidade para mim, humilde bolsista, que realizava pessoalmente  estas tarefas junto com mãe e avó.
Ele trouxe a ciência para dentro das casas e as casas para a sala de aula. A mutável  e fascinante ciência.
Era um admirável pedagogo.



Vejo no atual ambiente universitário equivocado objetivo na formação de professores, por professores moldados neste equívoco, e que o perpetuarão através dos seus alunos.
Esta prisão mental é um soco no estômago de quem experimentou liberdades.
Tive o privilégio de viver no seio de uma família iletrada, que professava o livre pensar. E que não cultivava rancores ancestrais, inseguranças ou submissões.
Das linhagens materna e paterna  carrego exemplo de mulheres fortes e  de homens aventureiros e liberais.
Havia uma dose de machismo? Evidente. Onde não?
Preconceitos ou bullying social é uma constante, pelo mundo, até onde a vista (histórica) alcança.
Entretanto estas anomalias de comportamento bateram na superfície e resvalaram. Agradeço isto a infância bem vivida que me fez resiliente.
Talvez seja o que motive minha visão singular da educação frente ao lugar comum que está a vicejar.
Enquanto professora de artes e não ciências como veria meu aluno?
Alguém que precisa aprender o encanto da arte. Que necessita da instrumentalidade da experiência estética para cultivar sensibilidade, olhares, gostares.


História da humanidade é outro departamento. Religião e política idem. Assim como ciência tem outro enfoque, embora a mesma atitude.
Para uma aula de artes é necessário despir credos pessoais abrindo o caminho para a percepção fina, do mundo que nos rodeia, em formas, cores, sons, cheiros, texturas e sinergias.
Quando nos apropriamos do conhecimento para moldar o pensar de jovens mentes, a nossa imagem e semelhança, cometemos crime contra a liberdade. Não faz parte da prática magisterial determinar verdades de acordo com óticas particulares. Negamos para a página em branco seus próprios escritos e registramos nossa caligrafia de maneira a preencher todos os cantos. Não deixamos espaços para o germinar da opinião.
É cruel incutir pareceres e vivência, de quem teve (ou não) oportunidades múltiplas para construir seu próprio labirinto mental, nas mentes em formação.
Muitas vezes na tentativa de oferecer o mais adequado oferecemos grilhões. Boas intenções nem sempre denotam boas ações.
E me pergunto...Do que adianta liberdades de ir e vir, de esbravejar, escrever, decidir, escolher e formular ideias se negamos às páginas em branco a oportunidade de escreverem seus próprios pensares?


É necessário um grande coração para formar jovens mentes

Como professora não vejo possibilidade em transformar respeito para com a expressão livre da criança, seu gesto-traço, suas brincadeiras de faz-de-conta, e sua espontaneidade em direcionamentos, de acordo com minhas crenças, sejam quais forem.
 Olho  para a educação do passado, quando podíamos ler ou ouvir  João e Maria,  interpretando o que vinha de acordo com experiências pessoais...olho para a massificação cultural e ideológica hoje imposta e sofro de desalento.
Sinto-me muito próxima da ancestral escrava, da sua escravidão negra. Ou da ancestral europeia que não falava italiano por medo,  porque estava em outro país e o governo poderia não gostar. Da sua escravidão branca.
Ao olhar no espelho vejo com orgulho uma avó Aurentina, nascida e nomeada em homenagem a liberdade.


Ao olhar no entorno vejo almas atormentadas, sofridas,  sufocadas em agonia, rancores, resgates,  preconceitos classistas que se revelam, na sua característica de filme fotográfico, tão intensos quanto os formais que os originaram.
É avassalador.
Tento criar um abismo entre minhas obviedades e toda esta balbúrdia. Sempre que posso.
Omito-me voluntariamente. Sempre que posso, pois é uma realidade  muito opressiva.
Fico com a arte, enquanto ainda posso.
Enquanto ainda me é permitido,  e espero que nossas futuras gerações tenham a mesma oportunidade que eu.


A liberdade é um clamor visceral. Não pode ser moldada. Talvez temporariamente suprimida, mas faz parte da Natureza do homem, e só deixará de existir quando deixarmos de lado nossa humanidade.

Vídeo: The Gypsy Queens - L'Italiano (Toto Cutugno) - lembrou-me as belas canções italianas ouvidas na infância. 

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