segunda-feira, 4 de maio de 2020

Desenho I - O que é Desenho


TONY GODFREY, Desenho: uma arqueologia do ato de tocar, In: GodfreyT, Drawing today –draughtsmen in the eighties.Oxford e New York:Phaidon, 1990, pp. 9-17. [Tradução de Ana Cândida de Avelar.]
Uma criança está correndo pela rua com uma vareta na mão. Ela segura a vareta para frente de tal maneira que bate na cerca enquanto passa por ela. Fica na cerca um rastro das marcas.
Um adolescente, numa plataforma de estação de trem, tira do bolso, sorrateiramente, uma caneta de ponta grossa. Ele risca um bigode no cartaz de uma estrela de cinema. Ao pedir informações, um homem tira do bolso um lápis já muito gasto, um pedaço de papel e desenha um mapa grosseiro.
Um copo é derrubado e o café é derramado por todo o chão deixando um rastro escuro.
No desespero de uma emergência, o carro quebra. As marcas da derrapagem na estrada mostram onde se perdeu o controle.
Os desenhos estão por toda parte. Onde quer que dois materiais se toquem (a vareta e a cerca, o lápis e o papel, o líquido e a terra, a borracha e o asfalto) resta a evidência de seu encontro.
Assim, examinar desenhos é escavar; refletir sobre a atividade do passado. Eles nos apresentam a arqueologia dos atos de tocar.
O desenho é a mais democrática das formas de arte. Todos nós desenhamos: quando fazemos um projeto para reformar nossa casa; quando rabiscamos enquanto falamos ao telefone, ocupando a mão ociosa, ou quando cobrimos uma imagem que nos incomoda. Nós desenhamos para explicar algo, para preencher o tempo e o espaço; desenhamos para apagar outra imagem. Por mais autodepreciativos que possamos ser com esses desenhos, eles frequentemente preenchem alguma necessidade vital.
Quando crianças, aprendemos a desenhar antes de aprendermos a escrever. Podemos dizer que escrever é uma forma especial de desenhar.
Quando fazemos experiências desenhando, aprendemos a conceituar o mundo e seus objetos. Linhas feitas sem pensar, logo se solidificam compondo estruturas que denotam alguma forma ou significado; estão além de traços sem um diferencial. Duas linhas se cruzam. Uma linha dá a volta e se completa. É essencial lembrarmo-nos disso tudo porque a natureza do desenho na arte contemporânea não é mais o que costumava ser.
Desenhos meticulosos feitos a partir de moldes de gesso e modelo nu foram, um dia, as bases da educação artística. Hoje, não é mais assim.
Atualmente, para a maioria dos estudantes de arte, os decanos desse desenho mimético, Rafael e Ingres, parecem tão remotos e exóticos quanto artistas de uma cultura há muito morta e distante.
Desenhar, vinte e cinco anos atrás, num período de pinturas de grandes dimensões e esculturas geometricamente derivadas, e mais tarde, nos anos 70, num período notável por performances anti objeto e arte conceitual, parecia sem importância.
O ressurgimento do desenho como um meio experimental preeminente deve ser traçado não pela prática acadêmica, mas por suas raízes no mito e na psique humana comum e em suas atividades.
O mito clássico conta como a arte foi inventada por uma jovem coríntia, a filha de Butades, que, tendo sua mão guiada pelo Cupido, traçou na parede o contorno da sombra de seu amado adormecido.Quando Jasper Johns traça a sombra do menino Andrew Monk da mesma maneira, nós ficamos conscientes de como, mesmo estando Johns entre os artistas mais sofisticados, algo de fundamental não mudou.
Desenhar é, ao mesmo tempo, algo físico e um ato de magia solidária. É uma forma de representar o mundo e também de trazer algo de novo. É uma maneira de copiar e criar.



O mesmo pode ser dito dos desenhos paleolíticos nas cavernas de Lascaux que têm sido vistos como o começo da arte ocidental.
 Há uma fascinação permanente pelo poder de evocar imagens que o desenho tem. Há uma obsessão permanente pela atividade de traçar linhas, de produzir traços.
Apesar da profusão de livros sobre arte contemporânea, há poucos que tratam exclusivamente do desenho. Pode-se, proveitosamente, argumentar com os que existem.
Podemos nos opor parcialmente ao livro Twentieth Century Drawing, de John Elderfield, devido à ênfase na pura apreciação dos objetos de arte, mas acima de tudo porque ele usa a definição do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, segundo a qual, um desenho é uma obra de arte sobre papel.
O que um desenho é, deve ser definido mais pela atividade que o origina do que pelo material sobre o qual deixa seu traçado. Além do fato de a definição do Museu de Arte Moderna excluir aqueles primeiros desenhos de Corinto e Lascaux, também bane muitos dos trabalhos que, estando nas paredes, sendo objetos colocados sobre o chão ou no ar, foram preeminentes em estender o status e o significado atuais do desenho. (Uma definição funcional menos restritiva poderia ser: “Um grupo de traços relacionados, provavelmente linear, deixado por um objeto ou objetos que tocam uma superfície; em geral, a superfície permanecerá visível parcialmente em torno desses traços. Uma combinação de traços e superfície assim parecerá denotar um significado”. Entretanto, definições assim, até mesmo uma cautelosa como esta são, em arte, mais honradas por seus princípios do que por seu cumprimento. Rudi Funchs, em seu recente livro sobre Richard Long, descreve uma obra antiga de Long,Line Made by Walking (1967)como um trabalho-chave que, como o (Quadrado Preto, de Malevich, “anulou a arte anterior com uma grande e abrupta declaração de convicção”. Isto, sem dúvida, é um exagero. Contudo, o trabalho de Long é provocativo devido à ênfase na atividade física e na impermanência do trabalho artístico. (O trabalho foi produzido caminhando-se repetidamente num campo, para frente e para trás, até que uma linha distinta, talvez temporária, fosse demarcada por lâminas de vidro quebrado. A obra foi registrada em preto e branco.) Nesta e nas peças subsequentes geradas pelo caminhar do artista, Long parecia propor que numa JASPER JOHNS,“Spring” (1986), encaustic on canvas,época de ameaça de desastre ecológico, na qual estamos cada vez mais afastados da natureza,a arte deve tocar o mundo sensível e antiga de Long, Line Made by Walking (1967 discretamente, e não impor-se de maneira arrogante ou agressiva.



Frequentemente em lugares inacessíveis, as linhas feitas com pedras, galhos ou produzidas por sulcos na relva, são trabalhos conhecidos, em geral, somente por lacônicas descrições escritas ou fotografias. Embora Long tenha chamado tais trabalhos de esculturas poder-se-ia argumentar que são a extensão do processo de desenho. Distanciando-se dos meios artísticos aceitos, (incluindo o desenho tradicional que, com suas associações acadêmicas e modelos vivos era visto como algo antiquado pelos artistas jovens e radicais) Long estendeu a definição de Paul Klee de uma linha como um ponto que se leva para dar uma volta, para aquela da figura que se leva para dar uma volta. Com seu uso de poucas formas rudimentares, particularmente a espiral e os círculos concêntricos, Long enfatizou a natureza mítica e universal da atividade de desenhar. Até mais explícita em suas conjunções de algo ostensivamente físico e mítico, foi a Spiral Jetty (1970), de Robert Smithson, que, mesmo sendo um grande projeto de construção que envolveu a movimentação de toneladas de terra e pedras, poderia ser vista como um desenho sobre a superfície da terra tanto quanto as linhasde Nazca, no Peru, ou o gigante de Cerne Abbas que é cavado em giz sobre os montes da Inglaterra.



Feito não muito antes de sua morte prematura em 1973, o desenho Entropic Landscape, de Robert Smithson, foi um presságio de muitos dos desenhos das duas décadas seguintes. Influenciado pelas imagens de ruínas e interiores retorcidos de prisão feitas por Piranesi, suas linhas retilíneas (não diferentes das usadas por um engenheiro) se contrapõem à impraticabilidade mítica daquele artista visionário. Os traços, alternadamente, descrevem coisas ou assumem sua própria vitalidade intrínseca, como vemos nos fluxos de lama ou breu, nos montes. Uma área como essa na ilha frontal com seus triângulos irregulares parece o resultado de algum processo autogerado. Não sabemos ao certo como ler o desenho: como uma concepção fria, ou autográfica; ou passional.O desenho de Smithson pode ser visto como uma união de dois tipos diferentes de desenho. Esses tipos são mais bem definidos no ensaio de Lawrence Alloway, de 1975, sobre Sol LeWitt: “Há a noção de desenho como discurso grafológico: seriam os traços mais diretos que podem ser produzidos por um artista e, portanto, autêntica evidência da presença deste, devido à sua intimidade com os traços. O toque pessoal é altamente valorizado nesta base. Há outra noção, a de que o desenho não representa uma liberdade genética, mas o artista em seu estado intelectual mais rigoroso. Neste sentido, o desenho é a projeção da inteligência do artista em sua forma menos discursiva: a linha é a substância, o centro da arte”. Bernice Rose, em seu livro de 1976, Drawing Now, toma esse texto como um ponto de partida e, como Alloway, vê nos desenhos de Sol LeWitt as duas noções reconciliadas –embora com uma tendência para a noção do intelectual ou conceitual.



Na realidade, como devemos ver nos capítulos seguintes, o trabalho de LeWitt é um exemplo extremo: a maioria dos artista que, como LeWitt, emergiram da arte conceitual ou pós-conceitual têm usado o desenho, não tanto para estender o lado intelectual, mas para introjetar o irracional em situações predeterminadas, sendo estas uma rede ou um conjunto de instruções. Estou inclinado a ver, não uma reconciliação, mas uma luta vigorosa entre esses dois tipos de desenho como sendo a mola propulsora do desenho hoje. Ainda que se trate de um livro útil, os argumentos de Rose foram superados não só pelo desenvolvimento da arte pós-conceitual, mas também, desde meados dos anos 70, por um ressurgimento do desenho representacional, com sua fé no modelo vivo e, por volta de 1980, com a ascensão do que foi chamado cruelmente de neo-expressionismo, com uma mistura de imaginário carregado, manejo gestual e variedade estilística. SOL LEWITT Small Etchings/Black & White, 1999 Portfolio of eight etchings.https://crownpoint.com/artist/sol-lewitt/small-etch-bw_composite/ Um terceiro autor com quem se deve argumentar é Philip Rawson cujo livro Drawing, por toda sua coerência e inteligência ao categorizar antigos desenhos dos mestres, falha notavelmente ao abordar o desenho contemporâneo. De maneira sintomática, num livro mais recente, Seeing through Drawing, quando Rawson trata de dois artistas contemporâneos, os escolhidos são os tradicionalistas David Hockney e Jim Dine. O constante apelo de Rawson é a “uma linguagem de traços” que nos coloca o que é visto e o que é sabido de algo. “Com o desenho”, escreve Rawson, “como acontece com a língua falada, há um fator comum em meio aos vários usos, a estrutura fundamental da “linguagem” em si, com sua gramática e sintaxe, (...) a arte de desenhar é, de um modo, como a língua: pode-se usá-la para transmitir todos os tipos diferentes de mensagens. Assim como nossa língua falada e escrita pode ser usada para contar piadas, pregar sermões, fazer política, gravar informação industrial, escrever poesia lírica, fazer amor com alguém, expressar sentimentos e atitudes complexos ou ter uma conversa banal, também pode-se usar o desenho para fazer uma quantidade semelhante de coisas”. Esta é uma colocação dissimulada: dar um desenho a alguém pode ser um ato de amor, mas desenhar, apenas, é improvável que comunique uma informação desse tipo. Como o restante da população, ainda não tive uma conversa banal por meio de desenhos. Como se pergunta como está o tempo com um desenho? Pede-se ao chefe um aumento com um desenho?



No centro do desenho contemporâneo, está a questão sobre esta suposta equivalência linguística. Qual é o significado linguístico de um dos primeiros desenhos de Brice Marden no qual uma grade é sistematicamente coberta com grafite de modo que os traços se tornem opacos, e que se coberto por vidro, como acontece normalmente, reflete como um espelho? O desenho possui uma presença indubitável, mas seu significado é aparentemente tão opaco quanto sua superfície de grafite. No passado, podemos concordar que a jovem coríntia comunicava a aparência do perfil de seu amado, mas acharíamos que seu desenho comunicava o grau de paixão que ela sentia por ele? Se o desenho, neste exemplo, é como uma linguagem, então é mais como a linguagem corporal do que a escrita ou verbal. Alternativamente, em vez de se ver o desenho como uma linguagem, deveríamos vê-lo como um resíduo de uma atividade, talvez similar às pegadas que um dançarino deixaria na areia ou, talvez, similar às rugas e à cintilação deixadas na areia pelo mar que recua. Estes traços podem não ter um significado intencional, podem não usar uma “linguagem”, mas revelarão padrões, relações e até mesmo uma coerência satisfatória.



Imagine a Language Is to Imagine a Form of Life,um desenho de Cy Twonbly, nos coloca muitos destes problemas. De que maneira isto é uma linguagem? O que estes rabiscos e borrões dizem? E este gaguejar alternado e o fluxo da linha? Quando nos questionamos acerca deste desenho, respondemos com uma mistura de repulsão, atração, frustração e reconhecimento. O que faz disto um desenho e não apenas uma escrita desordenada? Que forma de vida poderia usar uma linguagem assim? –a resposta (e aí está a dificuldade) deve ser que, como podemos responder mesmo que parcialmente, esta forma de vida está de alguma maneira escondida dentro de nós. Entendê-la (ficar intrigado com ela, sentir-se relaxado com ela, aproveitá-la) como um desenho, é saboreá-la como uma possível forma de vida. É também compreendê-la como resultado de uma compulsão compartilhada; é perceber, como Valéry escreveu há mais de cinquenta anos (na citação presente no início deste livro), que o desenho é “a obsessão mais perseguida”; é perceber que estamos falando aqui sobre uma “necessidade”. Estamos entrando num campo no qual instigação e incerteza estão misturadas, onde a recompensa pode ser um auto conhecimento desconfortável em vez de uma reafirmação. Há problemas irredutíveis sobre o significado do desenho hoje e, como seus corolários, problemas relacionados a como se deve determinar a qualidade deles. Nossa língua é pesarosamente insuficiente para explicar o que experimentamos com o desenho. Enquanto procuramos encontrar definições claras , paradoxos nos esperam como armadilhas na selva. As elocuções gnômicas* feitas sobre o desenho por Ian McKeever, em 1982, soam mais verdadeiras em sua comicidade do que explanações mais instrumentais ou brandas. “A ordem inerente ao desenho sempre beira o caos.“Trata-se de uma atividade cheia de contradições; assim como um espelho, o desenho permite a coexistência entre a alienação e a intimidade.”Ver desenhos é como ouvir conversas de outras pessoas: nunca temos certeza do que está sendo dito.” * gnômico= que tem caráter de gnoma-sentença moral.


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