domingo, 13 de setembro de 2020

Eu e Inclusão Social



As Irmãs

Tenho muito a dizer sobre Inclusão Social de pessoas diferentes.
Na infância dei uns tapas em alguém para defender minha irmã. Na época pensava que era um dever, pois sempre tive a noção de que ela seria para sempre minha "irmã menor".
Obviamente no decorrer do tempo aprendi que a proteção deveria ser de outra forma e não estapeando meus pares.


Almoçando com a sobrinha

Vivi durante seis décadas a evolução de reações da sociedade com pessoas deficientes.
Minha irmã tem uma deficiência em relação aos demais. Ela aprende menos e muito vagarosamente e seu comportamento social é infantil.
Hoje as pessoas tendem a amenizar o vocabulário, e classificam os que assim são como "adultos especiais".
Ontem os termos eram mais agressivos ou científicos. Retardo mental, oligofrenia, deficiência mental.
Vivenciamos várias fases. Como classificam não importa, a atitude sim.


Presentinho

É muito difícil explicar para as pessoas como e quanto ela é diferente, as vezes na presença dela, ou mesmo para ela, sem causar sofrimentos.
Na infância ou juventude minha irmã ouviu muitas vezes o termo "retardada", de pessoas estranhas, de conhecidos e até de familiares idosos.
Isto deixou marcas profundas. Traumas.


Com quatro anos.

Até hoje ela chora e diz:
- As pessoas vão dizer que sou retardada. Eu não sou!
Ou
- Você vai dizer pras pessoas que eu sou retardada.

Óbvio que eu não digo.
Tenho o maior cuidado para não referir  "a condição" na frente dela.  Ou em transparecer que ela pertence a  uma" minoria". Explico que que ao nascer houve um longo tempo sem respirar, o que prejudicou a memória. Que ela esquece algumas coisas e ficou difícil aprender a ler.

Isto parece ser aceitável e ela diz:
- Eu fiquei roxa quando nasci, sem respirar. Daí não consigo aprender a ler. Não é minha culpa

Existem cicatrizes profundas e as limitações do seu cérebro dificultam a compreensão ou aceitação.

Certa vez uma senhorinha  muito bondosa e religiosa, vizinha da minha família por  cinco décadas, falou para uma amiga na nossa frente:

- Coitada desta daqui!  Tem que cuidar da irmã  que é retardada , o tempo todo.

E ela amava minha irmã. Sempre tratou muito bem no conceito antigo e ignorante de que uma pessoa com retardo mental não é capaz de perceber a própria diferença .
Isto existe em várias camadas e situações sociais. É muito cruel e deixa marcas profundas.


Arte na Avenida Paulista

Quando pequenas fomos parar no Internato e Externato Menino Jesus. Um pequeno colégio religioso que aceitava meninas do interior em regime de internato, e algumas da cidade, durante todo o dia, em externato.
Solução perfeita para mãe e avó católicas que trabalhavam o dia todo no sustento da família de quatro mulheres.
Não funcionou.
As freiras realmente eram compassivas e afetuosas. Passavam longe do estereótipo do "colégio interno" que se lê no romances. O colégio era uma extensão amorosa da nossa casa, que eu particularmente adorava.
Entretanto não estavam preparadas para receber uma criança "diferente". Que tinha convulsões, acessos de raiva, batia, chutava e mordia.


Solicitaram à minha mãe outra solução, e após a peregrinação médica surgiu a escola Tia Nilza. Atualmente Escola Nilza Tartuce.
Uma bênção!
Uma escola especial, com professores treinados que sabiam como lidar com tais peculiaridades.
Até os dezoito anos Cris ficou na "Tia Nilza".
Em classes de poucos alunos, que eram agrupados de acordo com a capacidade de aprender, de reagir aos métodos de ensino.
Ela evoluiu e aprendeu muito, embora no decorrer dos anos os profissionais da área caracterizassem sua condição como retardo leve, idade mental permanente de nove anos.



Grupo "Amigas Pintoras"

Agora tenho ao meu lado uma pessoa que extrapola muito esta condição.
O cérebro da minha irmã não tem nove anos. Abriga diversos níveis de entendimento e diversas idades. Com limites. As vezes tem nove, noutras  quatro ou seis, plana pela  adolescência.
Existe uma fronteira invisível entre estes universos infantis e o "mundo adulto" que ela não consegue ultrapassar. A lesão nos neurônios e as áreas cerebrais prejudicadas não permitem.
É definitivo e irreversível para nossa ciência.


Aos dezoito foi transferida para a Escola Mercedes Stresser.
Desastroso! As classes eram maiores, ela não conseguia se adaptar, chorava muito, regrediu no comportamento e minha mãe optou pelo ensino particular. Contratou uma professora particular da "Escola Tia Nilza".
Entretanto isto tinha um custo muito elevado. Na escola ela recebia suporte do governo, em casa não. O ensino formal da minha irmã encerrou por volta de 20 anos por dificuldades econômicas.


Em Paquetá - RJ

Cris se identifica naturalmente com crianças e jovens, procura e se vê pertencente a estes grupos. Tolera a companhia da terceira idade, faz negação veemente da velhice, e sente falta de "amiguinhas".
Contudo a vida está longe de ser perfeita.
Minha irmã nunca será independente e sempre terá que conviver com  frustrações.
Sofrerá se for colocada num grande grupo, sozinha, e ficar a mercê das diversas visões que existem na sociedade, sobre pessoas diferentes.
Inclusão não progride quando forçada.
Ela ocorre na medida que as pessoas entendem a sensibilidade dos "especiais". Quanta tristeza a rejeição ocasiona para quem não tem condições de racionalizar preconceitos.
Um "adulto especial" é uma minoria diferente.
A revelia de outros grupos discriminados (étnicos, religiosos, homossexuais, com deficiências físicas...) este não consegue racionalizar e superar os traumas da discriminação.
Um negro, por exemplo, pode entender o que é preconceito, suas origens, a ignorância, superar raivas ou traumas. Consegue construir seu espaço por iniciativa própria. O doente neurológico não.


No jardim

Nosso Sistema Educacional não tem, e se vê extremamente longe de ter, suporte adequado nas escolas, para incluir estas crianças.
É cruel permitir que sejam cobaias neste processo em construção, para atender uma demanda teórica.
Inclusão ainda não existe na prática da sociedade humana, ignorante, mal informada.
É necessário que crianças sejam educadas para incluir, que adultos modifiquem visões, porém nossos "especiais" não podem ser o instrumento destas tentativas.
São pessoas cujas feridas se revelam profundas com cicatrizes irreversíveis.


Confraternização de "Amigas Pintoras"

Porém existem caminhos.
Se não é viável jogar os "especiais" no meio dito normal, podemos tratá-los com a dignidade que merecem, em espaços adequados, mostrando que lhes é possível fazer praticamente tudo.
Um exemplo muito lindo disto é a Companhia de dança Guerreiros.
Fisioterapeutas, professores, esportistas e pais se empenham para ensinar através da dança. E todo ano levam ao palco uma peça musical com este grupo heterogêneo mostrando que todos podem ser artistas.
Outro exemplo são os pequenos grupos de arte, ou artesanato, propiciados pelo estado e iniciativa particular.


Primeira aula de Pintura

Com ressalvas.
No inicio da prática de pintura ela entrou num grupo onde minha participação não era permitida. Foi uma experiência ruim. Não houve o empenho necessário do grupo e do orientador para que ela fosse incluída. Ficou a margem, num canto e não quis mais voltar.


Amigas Pintoras - Rua da Cidadania

Por outro lado, quando entramos no grupo de pintura da rua da Cidadania a inclusão se deu de maneira natural e progressiva.
Arte é um caminho com muitas possibilidades a serem exploradas, onde todos podem se encontrar sem fronteiras.


Grupo de Pintura - Rua da Cidadania

Mesmo no mundo da arte as sensibilidades em relação ao outro são muito diferentes. Existem as pessoas que toleram, compreendem, aceitam e outras nem tanto.



Oficina de Gravura - MASP

Entretanto, de maneira geral os professores artistas me parecem um caminho profícuo para estabelecermos a verdadeira Inclusão Social.

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